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Lá vai o trem com o menino...

O Beco do Bonésio

Nenhum dos fatos descritos inicialmente mudaria a rotina das manhãs de verão do pequeno Beco do Bonésio, formado por casas simples e pequenos barracões em um bairro de Três Corações.



O filho de Luiz e Carmen

À época, Júlio ainda era o filho único de dona Carmen e de seu Luiz. A mãe era normalista, mas não atuava na profissão, pois tinha de tomar conta da casa e da criança. O pai trabalhava na farmácia do senhor Franqueira, que ficava próximo à casa deles e atendia a toda a região. Mas a maior clientela era formada pelos funcionários da RMV.

As vendas eram anotadas nas tradicionais cadernetas, para o pagamento no final do mês. Seu Luiz atendia no balcão e anotava as compras, mas ficava mesmo atento era ao trabalho do senhor Franqueira na manipulação dos remédios, produzidos na própria farmácia. Aos poucos, ele foi aprendendo o ofício.

Naquele tempo, dona Carmen já sabia que a RMV mantinha o Serviço de Assistência Social da ferrovia em Belo Horizonte, onde havia atendimento médico, dentário e também uma farmácia que produzia os remédios em maior escala. Havia, ainda, um armazém que fornecia mantimentos a um custo menor, e os funcionários podiam anotar as despesas na caderneta.

Era a brecha de que ela precisava para tentar viabilizar um dos seus sonhos: conseguir a transferência do marido para a Capital. Mesmo não sendo funcionário da RMV, seu Luiz já conhecia a rotina do setor de saúde da empresa e, a cada dia, dominava mais os segredos da manipulação farmacológica.



Escuro absoluto

Dona Carmen, esposa e mãe visionária, não perdia oportunidades de enviar cartas às chefias da RMV pedindo a transferência do marido para BH.

Seu Luiz conseguiu um emprego no Serviço de Assistência Social da Rede, que funcionava no Edifício Chagas Dória, próximo à estação ferroviária, no Centro de Belo Horizonte. Ele foi trabalhar na farmácia, que era muito bem montada e incluía um laboratório, onde se concentrava a produção de todos os remédios fornecidos pela RMV aos funcionários.

Ele estava pronto para começar a carreira na cidade grande. E dona Carmen não cabia em si de satisfação em ver seu sonho realizado. Não seria mais preciso erguer o filho no colo, quando passava o trem no fundo de casa, e exclamar “Adeus, Belzonte!”.

Mas, mesmo com a mudança concretizada e o emprego conquistado, a vida não seria fácil para a família Cabizuca, a partir daquele final de 1943 em BH, sem parentes ou amigos.



A luta pela moradia

A primeira dificuldade era a mais básica para uma família vinda de fora: encontrar um lugar para morar. Naquela época, a cidade, em expansão demográfica, carecia de moradia. Nem para alugar se conseguia uma casa ou barracão com facilidade.

Mas o fato de eles chegarem a BH já com emprego – e fazendo amigos no trabalho – facilitou a luta pela acomodação da família. O primeiro a se oferecer para acolher os Cabizucas foi o colega Silvino, que morava com a esposa e dois filhos na Rua Silva Jardim, no bairro Floresta. A via desembocava na Rua Sapucaí, já nas proximidades da estação ferroviária.

Silvino cedeu um quarto da casa para eles. Na prática, todos iriam usar a mesma cozinha, o mesmo fogão a lenha e a mesma “casinha”, que ficava no fundo do quintal. A esposa de Silvino, Maria, era muito despachada e logo combinou com dona Carmen: “Primeiro, eu faço nossa comida, depois, você faz a de vocês”.

E assim os Cabizucas foram enfrentando os meses iniciais em BH. Era tudo bastante apertado, mas todos viviam bem. O salário de Luiz até daria para pagar um aluguel, mas, realmente, não havia casas para alugar, e Silvino se dispunha apenas a ceder o cômodo sem o alugar. Nessa altura, Júlio já brincava, na rua, com os colegas do bairro.

Nos meses seguintes, seu Luiz nunca deixou de procurar casa para alugar, mas, sempre, sem sucesso. Entretanto, um novo fato iria apressar a mudança: o filho dos donos da casa, Gair, resolveu se casar, e eles iriam precisar do quarto emprestado. Depois de um ano morando ali, chegara a hora de a família Cabizuca encontrar uma nova morada.

Com o anúncio do casamento, a família passou, então, por novas apreensões. Foi quando outro colega de trabalho de seu Luiz – Celso Ferreira Pinto, casado com dona Dininha e pai de nove filhos – decidiu ajudar a família Cabizuca.

Na ausência de um cômodo mais separado, Celso cedeu a própria sala da casa, que se transformou, então, na segunda morada dos Cabizucas. Mais uma vez, não se falava em aluguel. A casa ficava na Rua Lopes Trovão, também no bairro Floresta . Para lá foram os três, que se somaram à família de onze membros de Celso. Ao todo, eram quatorze pessoas vivendo sob o mesmo teto.

O menino Júlio continuava a fazer amigos no bairro e a brincar nos arredores de casa. Mas ainda não estudava aos seis anos.

A Lopes Trovão fazia esquina com a Rua Salinas, no bairro Floresta, e ia desembocar em um brejo que, mais tarde, daria lugar à Avenida Silviano Brandão. Do outro lado do brejo, ficava a Vila Maria Brasilina, onde é hoje o bairro Sagrada Família. Ali, residiam as famílias mais pobres de operários, que foram construindo suas casas pelos becos da Vila.

Naquela época, a RMV instituiu um plantão da farmácia para atendimentos de emergência aos ferroviários também de madrugada. Seu Luiz passou a trabalhar no plantão – noite sim, noite não – para melhorar os rendimentos.

Júlio não poderia imaginar, naqueles primeiros anos de BH, que mais tarde iria conhecer um rapaz, morador da mesma rua, que faria parte de sua trajetória pessoal e profissional para o resto da vida. Um jovem de olhar astuto, de nome Walfrido. E sobrenome Mares Guia...

A melhora na renda somou-se à notícia do surgimento de um barracão vago, para aluguel, um pouco mais acima, na mesma Rua Lopes Trovão. E lá foi a família Cabizuca conhecer os inquilinos que moravam na casa da frente. Pela primeira vez, depois de dois anos em BH, eles puderam, finalmente, ter uma casa de verdade só para eles, com a sensação de muito mais liberdade.

A nossa nova casa era uma maravilha. Tinha um quarto, uma sala, cozinha e banheiro. Tinha até um corredor privativo que dava numa área com independência total. Na frente, morava a família de dona Filermina e de seu Domingos, que se tornaram grandes amigos para a vida toda, incluindo os três filhos – Irene, Hélio e Ieda. O Hélio, por sinal, foi um grande companheiro meu. Ele e Irene já são falecidos. Entretanto, essa lembrança do passado é muito viva até hoje pela nossa convivência muito próxima com a Ieda e seus três filhos, Sidney, Mara Rúbia e Fernando.



Pai calmo, mãe exigente

Júlio ia crescendo e conhecendo melhor os pais, já na rotina bem mais movimentada em Belo Horizonte – especialmente se comparada à quietude do Beco do Bonésio.

Muitos anos depois, ele relembra aqueles tempos.

Eu vi meu pai trabalhando, durante anos e anos, no laboratório da farmácia da RMV, no Edifício Chagas Dória. Ele utilizava pesos tão pequenos que tinha de pegar com pinça para colocar naquelas balancinhas de dois pratos para pesar cada princípio ativo dos remédios. Lembro-me de que todos os comprimidos tinham o mesmo formato. Ele também fazia xaropes, que ficavam estocados em vidros escuros, em prateleiras altíssimas. Controlava cada mililitro que saía.

Na prática, meu pai se tornou um farmacêutico fantástico. Apesar de não ter completado nem o curso primário, ele tinha uma ótima memória e um enorme prazer em seu ofício. E fazia aquilo com esmero, seriedade e um foco danado.

Meu pai sempre foi muito calmo e sereno, a ponto de não levantar a voz para ninguém. Nunca vi papai falando mal de nenhuma pessoa. Ao contrário de minha mãe, que era firme e muito exigente. Eles tinham temperamentos muito diferentes. Mas minha mãe foi fundamental para colocar ele para frente, desde que decidiu ir para Belo Horizonte. E era sempre assim: meu pai acompanhava minha mãe em tudo.



Os cuidados do pai

Seu Luiz era também uma pessoa muito religiosa. Em BH, ele entrou para a Sociedade São Vicente de Paulo, na Igreja Nossa Senhora das Dores, onde, além de outros setores, ainda cuidava da farmácia da instituição. Depois, passou a atuar na Igreja de São Pedro.

Anos mais tarde, ele mantinha ainda uma espécie de farmácia em casa, para atender os mais necessitados das redondezas. Naquela época, quando a campainha de casa tocava, no domingo pela manhã, a esposa já anunciava: “Luiz, seus pobres já chegaram!”

O pai de Júlio era disciplinado até em um pequeno vício: fumava quatro cigarros por dia – um pela manhã, um depois do almoço, outro à tardinha e o último, antes de dormir. Até que parou ao completar sessenta anos e ouvir do médico que tivera um princípio de infarto.



A primeira professora

No início de 1945, a família se muda para uma nova casa, na Rua Particular (hoje, Buarque de Macedo), número 75. Não era mais um barracão: agora, era uma casa de frente para a rua. Se a casa nova era uma grande novidade para o menino Júlio, outro fato marcante ocorreu no ano seguinte, quando ele completou sete anos: começou a estudar. Ele já queria ir para a escola antes, mas teve de esperar um tempo, pois não podia entrar na primeira série aos seis anos.

Em 1946, o filho de seu Luiz e de dona Carmen foi matriculado no Grupo Escolar Barão de Macaúbas, no bairro Floresta. Ele passou, então, a conviver com a rotina escolar: o uniforme, a merenda, a hora marcada, os deveres. Não faltou nada naquele começo de vida escolar. Nem mesmo aquele sentimento comum a tantos garotos: a paixão pela primeira professora, dona Zilda Viana Passos de Mello.

Dona Zilda era uma santa professora. Um espetáculo de pessoa. Ela me adorava, por isso, ficamos muito amigos. Ela era de uma serenidade total e muito amorosa. Era casada com o senhor Jair, um cara bacana e tranquilo, e não tinham filhos – só um sobrinho para criar.

Ela morava perto da minha casa e se tornou uma amiga da nossa família. Lembro-me que cheguei a morar uns dias com ela, quando minha irmã Leda nasceu, pois o parto foi lá em casa. Nunca me esquecerei dela!

Vem também daquele período o primeiro registro de sua carreira como mestre e da marca que acompanharia Júlio pelo resto da vida: “Professor Cabizuca!”. Vale o registro histórico de como tudo começou, ainda que informalmente.

Eu ensinava o sobrinho de dona Zilda. Fui professor dele, que foi a primeira pessoa para quem dei aulas. Na verdade, ele foi minha cobaia!

Aos poucos, Júlio foi fazendo amigos na escola. Ele era o único que tinha vindo do interior, por isso, se sentia um pouco como um menino da roça, como revelou mais tarde. Mas, ao se enturmar, foi conhecendo os colegas e o bairro. Ele se lembra, por exemplo, de José Maria Pessoa Duarte, cujo pai tinha uma fábrica de refrigerantes na região. Ou mesmo da tradicional Sorveteria Universal, que ainda existe no bairro.

Muitas ruas já eram familiares à turma, e todos andavam com segurança por elas, pois era todo mundo conhecido. À época, o território dos garotos englobava as avenidas do Contorno e Francisco Sales, as ruas Curvelo e Itajubá, além da Praça Negrão de Lima, entre outras.

Nós íamos tomar refrigerante quente na fábrica. Cada um podia beber de cinco a seis garrafas de graça. Já a sorveteria tinha vários tipos de picolés, como os de frutas ou creme, que custavam 50 centavos, e os de groselha, que eram mais baratos. E a gente escolhia o picolé de groselha para fazer o dinheiro render mais.



Empreendedor nato

A veia empreendedora do jovem Cabizuca começou a florescer quando ele tinha nove ou dez anos e se divertia com os amigos nas imediações de casa, no bairro Floresta.

Nas ruas, a meninada do bairro brincava de rouba-bandeira, jogava bente altas, empinava papagaios e disputava partidas de jogo de botão. Naqueles anos, mesmo em sua inocência de criança, Cabizuca já começava a praticar algo que hoje é chamado de empreendedorismo.

Sete décadas depois, o já empresário de sucesso relembra aquele tempo sem saber, à época, que suas intuições infantis já estavam recheadas de conceitos de economia e marketing:

“Tinha muito menino brincando na rua e querendo se divertir.” (Descubra o seu mercado local.)

“Todos queriam soltar papagaio, que, muitas vezes, estragava com facilidade.” (Identifique as demandas em potencial.)

“Imaginei que poderia começar a fazer papagaio e oferecer botões para os jogos.” (Saiba que toda demanda pode gerar oferta.)

“Aí, eu pensei: por aqui, tem bambu à vontade para fazer taquaras.” (Garanta insumos abundantes e de baixo custo.)

“Fui a uma loja, com algum dinheiro, ali mesmo na Floresta, e comprei papel de seda.” (Faça o investimento necessário, com fornecedores próximos para reduzir custos.)

“Resolvi fazer uns papagaios com barbela e uns enfeites redondos na ponta, com formato de argolas.” (Inove para ampliar o mercado.)

“Papai arrumou um carpinteiro, que fez uma manivela especial para mim. Ela era uma beleza, pois rodava bem e cabia muita linha para, depois, eu soltar os papagaios bem alto.” (Invista em bens de produção eficientes, também chamados de capital fixo.)

“Depois dos papagaios, veio o jogo de botão.” (Diversifique a carteira e a oferta de produtos.)

“Os botões eram muito caros, e eu descobri, não sei como – talvez com alguma costureira –, que, na Rua dos Caetés, havia muitas lojinhas que vendiam diversos tipos de botões, inclusive mais baratos.” (Encontre o nicho onde se concentram seus fornecedores, pois a concorrência entre eles garante insumos mais diversificados e de menor custo, sem perda de qualidade.)

“Descobri um botão especial, mais alto e com vários degrauzinhos, que apelidei de ‘botão de escadinha’. Este era valiosíssimo, pois permitia efeitos especiais na hora do jogo.” (Saiba que a oferta de produtos diferenciados e mais eficientes fideliza os clientes e amplia vendas.)

“Apesar de ser muito bom, eu comprava o botão de escadinha muito baratinho e vendia por três ou quatro vezes mais!” (Lembre-se de que a ampliação da margem de lucro é uma das boas recompensas do empreendedor de sucesso!)

“Eu vendia tudo isso ali para a turma. Os caras gostavam, mas não sabiam onde eu comprava – e eu não contava!” (Enfim, nunca esqueça a maior lição: o segredo de mercado é a alma do negócio.)



Uma história e muitas lições

Naquela época, o menino Júlio saía logo depois do almoço para ir à escola Barão de Macaúbas, não muito longe de casa, onde já cursava a terceira série. Além dos livros e cadernos, levava consigo a pequena merendeira. A merenda, simples, era uma garrafinha de café com leite e um pão com manteiga.

Na escola, já tinha alguns amigos, todos nascidos na Capital. Ele se sentia o próprio menino da roça, que acabara de chegar do interior. Entre os alunos, havia um que se destacava, não só pelo tamanho, mas por certa liderança na hora de fazer maldades em público, para a alegria dos seus pares mais próximos.

Ele não era um mau elemento, mas acabava sendo induzido pelos colegas a fazer, com os mais vulneráveis, o que poderia ser classificado, à época, como pequenas sacanagens – algo que, muitas décadas depois, responderia pelo nome de bullying. Esse perfil já seria o bastante para muitos estudantes não esquecerem, por muito tempo, o nome do rapagão – Pedro.

Júlio, aluno do turno da tarde, pouco se encontrava com Pedro, que estudava de manhã. Mas um episódio, em particular, fez com que o menino Júlio não esquecesse o nome e o perfil do colega para o resto da vida.

Certo dia, ele se despediu da mãe e tomou o caminho da escola. No trajeto, em um passeio largo da Avenida do Contorno, deparou-se com um grupo de estudantes já voltando da aula. Entre eles, o Pedro. Ao passar pelo grupo, Júlio ouviu uma frase que jamais esqueceria também: “Vai, Pedro, toma a merenda dele!”

Não deu outra. O grandalhão se adiantou e, com alguma violência, arrebatou o pão com manteiga da merendeira de Júlio, que não impôs nenhuma resistência. Muito tenso após o episódio, ele prosseguiu em seu caminho, com as gargalhadas do grupo retumbando nos ouvidos.

No recreio, ficou em silêncio. No lugar da merenda, a lembrança incômoda do ataque. Cenas inéditas para uma mente ainda inocente, que nunca imaginara que algo como aquilo pudesse acontecer.

Ele tentou esquecer o ocorrido, mas, no dia seguinte, no caminho da escola, viu que não seria possível. No mesmo passeio, a mesma turma, a mesma frase gritada em público: “Vai, Pedro!” De novo sem merenda e sem reação aparente, Júlio resolveu não contar nada em casa ou na escola. A tensão e o medo só aumentavam diante da perspectiva de tal episódio virar rotina.

Sua única reação, no outro dia, numa estratégia inocente – e que se mostraria também ineficaz – diante da ameaça, foi atravessar a rua e trocar de passeio na hora de passar pelo algoz e seus pares. Mas tudo aconteceu de novo, só que do outro lado da rua.

O jovem Júlio, na solidão daquele sofrimento, buscou uma nova saída. Estudou alternativas de trajetos para ir para a escola e descobriu que poderia pegar um atalho por um beco pouco conhecido, que o faria evitar a Avenida do Contorno. Passou por lá durante uma, duas, três vezes sem que nada acontecesse. Era o Beco São Geraldo. Naqueles dias, com certeza, Pedro e seus amigos ficaram um pouco mais famintos. Não por causa da falta do pão com manteiga da lancheira de Júlio, mas por estarem privados do prazer que a humilhação pública de garotos mais novos levava ao grupo.

Assim, uma semana depois, aconteceu o quase inesperado por Júlio. No meio da travessia apertada do beco, seu corpo ficou tenso e imóvel quando avistou, adiante, o grupo de Pedro. De novo sem merenda, Júlio resistiu, sem buscar ajuda, no silêncio do seu segredo, a cada dia mais sofrido.

Mas algo aconteceu depois daquele dia. A percepção de que ele poderia não ter saída fez desabrochar, naquele menino de nove anos, sentimentos e percepções que iriam ser determinantes para toda a sua existência. Muito mais do que poderia imaginar nos idos de 1948, ao buscar uma forma de superar aquele que já era o primeiro grande sufoco de sua vida.

Era preciso reagir. A humilhação era, para ele, infinitamente maior do que os cuidados e o carinho da mãe ao preparar o pão com manteiga da merenda. Ele estava decidido, afinal. No dia seguinte, bem cedinho, o jovem Júlio não colocou a merenda na merendeira, que seguia pesada em seu ombro.

Naquela manhã, ele não buscou o subterfúgio do beco nem mudou de passeio ao avistar o grupo à sua espera. E, ao primeiro sinal de ataque à merendeira, ele mesmo tomou a iniciativa de buscar o pão dentro dela para entregar a Pedro.

Naquele instante, como num milagre diante dos olhos incrédulos de todos, o pão se fez pedra. Uma pedra pesada, com um pedaço de concreto de resto de construção agarrado a ela. Com muito mais forças do que as naturais para um menino de sua idade, Júlio arremessou a pedra, com determinação, em direção a Pedro, acertando-lhe em cheio a cabeça.

Em meio a tanto espanto, os fiéis discípulos saíram em disparada, deixando o líder abandonado e ensanguentado no chão. A mão direita de Pedro, que, por tantas vezes, fora protagonista de pequenas violências com alheios, agora tentava estancar o sangue da própria cabeça.

Júlio chegou ofegante – e novamente tenso – à escola. Na sala de aula, calado se sentou, calado ficou. Uma hora depois, era chamado à direção, onde, ao lado da diretora, já estava a mãe, aflita, a indagar: “Meu filho, o que houve? O que você fez?”

Chegara, finalmente, o momento do desabafo. Júlio contou, com detalhes, tudo o que vinha acontecendo desde o primeiro encontro no passeio, semanas atrás. Relatou com a simplicidade de um menino, mas com a determinação de quem quer apenas justiça diante de um júri silencioso. Nada aconteceu com ele. Não houve punição da diretoria, nem repreensões em casa. Entre os colegas, ele não se vangloriou de nada, pois não agira para tal. Pedro ficou alguns dias sem ir à aula.

Dias depois, Júlio seguia pelo passeio da Avenida do Contorno, rumo à escola. Em silêncio, com sua merendeira a tiracolo, passou no meio do grupo de Pedro. Em silêncio, respeitosamente, eles o deixaram passar.

Com o passar dos anos, Júlio Cabizuca sempre refletia sobre o episódio. Sabia que o ocorrido não fora uma mera briga de escola. E foram muitas as lições. O menino simples que, aos cinco anos, com os pais, saíra de Três Corações teria de aprender a enfrentar muitas dificuldades e a lutar para construir o destino que a vida lhe oferecia – generosamente, mas nunca de graça.

Júlio aprendeu que é preciso determinação e força de vontade para superar os obstáculos. Se não der para mudar de passeio ou desviar pelo beco para evitar as animosidades, é preciso enfrentá-las devidamente.

Esse episódio, vivido por ele ainda tão jovem, foi o primeiro de alguns sufocos que se tornaram determinantes e simbólicos em sua trajetória pessoal e profissional. E todos deixaram a mesma lição: é preciso lutar para garantir suas conquistas, seus direitos e seu espaço.

O silêncio da diretora da escola e da mãe naquele fatídico dia, após a pedrada e o desabafo, teria sido a última manifestação sentida por Júlio sobre o episódio, não fosse uma incrível coincidência, ocorrida vinte anos depois, que coroou essa história.

Júlio Cabizuca tornara-se diretor do Pré-Vestibular Pitágoras, que já era sucesso de público em Belo Horizonte. Ele estava, certo dia, coordenando as matrículas em uma das unidades do cursinho, em meio a uma confusão de candidatos que se debruçavam sobre o balcão da secretaria em busca de uma vaga.

De repente, ele vê um homem muito alto e corpulento, de rosto familiar, que se destacava entre os presentes.

Quem era? O inesquecível colega Pedro, em pessoa!

Estava ali para tentar matricular a irmã no cursinho. Imediatamente, o diretor o procurou, e ambos se reconheceram. Cabizuca levou-o à sua sala e disse que a irmã seria muito bem-vinda, garantindo-lhe a vaga, com toda a cordialidade.

A conversa parecia correr normalmente, não fosse o semblante daquele homem, a olhar nos olhos do ex-colega. Até que o diálogo corriqueiro foi interrompido por um não-mais-tão-grande Pedro, que disse: “Me desculpe pela minha covardia”

Às três horas e quarenta e nove minutos da manhã de 9 de agosto de 1945, no horário japonês, a aeronave militar Bockscar, dos EUA, foi carregada em uma base norte-americana com a arma denominada Fat Man, uma bomba atômica contendo mais de seis quilos de plutônio. Esses seriam os últimos momentos da Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1941.

Às sete horas, a aeronave já sobrevoava o território japonês. Às onze horas e um minuto, a arma letal foi lançada sobre o vale industrial da cidade de Nagasaki. Ela explodiu quarenta e sete segundos depois, a quinhentos metros de um campo de tênis, em uma fábrica de torpedos da Mitsubishi, no norte do país. A explosão gerou um calor estimado em 3.900°C e ventos de mais de mil quilômetros por hora.

Três dias antes, em 6 de agosto, em uma operação semelhante, os EUA tinham lançado outra bomba nuclear, dessa vez sobre a cidade de Hiroshima. As duas operações causaram a morte imediata de pelo menos oitenta mil pessoas. Foi a primeira – e única – vez na história que armas nucleares foram usadas em guerra contra alvos civis.

Em 15 de agosto, o Japão anunciou sua saída do conflito. Em 2 de setembro, o país assinou o Acordo de Rendição, encerrando a Segunda Guerra Mundial.



Fim da guerra

Em 1945, Júlio continuava a jogar bola de meia na rua e a brincar com os amigos. Foi naquele mesmo ano que outro acontecimento também ficou marcado na sua lembrança.

Júlio não se esquece de uma tarde de agosto, quando sua mãe, eufórica após ouvir o noticiário no rádio, levantou-o pela cintura e o colocou sobre a janela da frente da casa. Muito surpreso, o menino só teve noção do que estava acontecendo no mundo naquele momento, quando dona Carmen começou a gritar para que todos ouvissem: “A guerra acabou! A guerra acabou! Grita aí, meu filho: A guerra acabou!”

Chegava ao fim um dos mais sangrentos episódios da história moderna da humanidade, que, mais tarde, seria estudado pelos jovens de todo o mundo, como Júlio, que viveu aquele momento histórico, sentadinho na janela de casa.

Com tudo voltando ao normal, o menino começa a estudar no Grupo Escolar Barão de Macaúbas, em 1946, na primeira série. Ele permaneceu lá por mais três anos, até se formar na quarta série do ensino primário. Foi um período em que consolidou boas relações de amizade.



Infância em São Lourenço

A infância de Júlio foi dividida entre duas cidades próximas. Até os cinco anos, ele viveu com os pais em sua terra natal, Três Corações. Mas o berço mesmo da família Cabizuca era São Lourenço, uma tradicional estação de águas, de onde Júlio guarda ótimas lembranças – dos passeios de charretes às pescarias e outras brincadeiras de menino.

Eu me lembro muito bem do meu tio Geraldo, que sempre me chamava para pescar e pegar passarinhos, minhas diversões prediletas. Mas os cheiros da cidade são inesquecíveis. O principal deles era o do estrume dos cavalos das charretes. Aquele odor fez parte da minha infância. Tinha também o cheiro da fumaça que saía das chaminés dos fogões a lenha dos hotéis. Ah, tudo isso era a minha atmosfera!

Geraldo era um dos irmãos do pai de Júlio. Ele tinha outros cinco tios por parte de pai: Valdemar, Mário, Turíbio, Evarista e Elvira. Do lado da mãe, Júlio tinha os tios Roberto, Iracema e Marta. O berço da família Novais, de sua mãe, era a cidade de Lavras, que ficava no caminho de São Lourenço. A tia Evarista morava na roça, para onde Júlio também ia de vez em quando. Assim como ia para Cruzeiro, já em São Paulo, fim da linha da Rede Mineira de Viação, onde morava a tia Marta.

Mas as melhores lembranças são mesmo as de São Lourenço, onde ele passava boa parte das férias. A viagem de Belo Horizonte até lá durava nada menos que vinte e seis horas de trem.

O jovem Júlio talvez não imaginasse, à época, como a amizade com os colegas do Barão de Macaúbas iria durar, pois, como acontece com todas as turmas de escola, aos poucos, cada um foi seguindo seu rumo. Ele próprio mudaria de colégio no ano seguinte.

Mas os laços criados com aqueles amigos não foram totalmente desfeitos. Em 1981, pouco mais de 30 anos após a formatura, Júlio organizou, com ajuda dos ex-colegas Maria Josefina e Mário do Carmo, um reencontro de todos. Da turma original de 37 colegas, nada menos que 33 compareceram.

Após um encontro cheio de emoções nas dependências do Grupo, como relembra Júlio, ele ofereceu um churrasco a todos no Colégio Pitágoras Cidade Jardim.

Anos mais tarde, em 2009, um novo encontro reuniu dezessete deles, em espaço reservado por Júlio, no tradicional restaurante Macau, em BH, quando comemoraram os 60 anos de formatura no Grupo.

Às vezes, o papai ia junto, mas o comum era irmos eu e minha mãe. Não apenas até São Lourenço, mas também dando uma esticada para visitar a tia Marta. Como todo funcionário da Rede tinha passe livre, ficava mais fácil ir sempre.

Quando Júlio se tornou um rapaz, já trabalhando e estudando – e depois entrando para a Escola de Engenharia –, foi se transformando numa espécie de referência para a família em São Lourenço.

Eu era o neto mais velho, que foi para Belo Horizonte para estudar. Fui o primeiro a entrar para a universidade. Já tinha trabalhado em banco e depois me tornei professor. Assim, todos faziam muita questão de me agradar. Acho que, à época, eu não tinha muita consciência disso. Eles falavam: De que o Júlio gosta? Doce de figo? Então, tinha doce de figo! Ele gosta de comer rabada? No almoço, lá estava ela! Não que os outros netos não fossem bem tratados, mas eu era, assim, uma espécie de novidade.

Aos poucos, Júlio foi criando também mais afinidade com alguns tios. E uma das melhores lembranças é a da tia Elvira, irmã de seu pai.

Ela realmente foi um dos xodós da minha vida, pois era uma segunda mãe para mim. Nós ficávamos, muitas vezes, hospedados na casa dela e convivemos muito. Com minha mãe, era tudo preto no branco, mas, com ela, era mais tranquilo, pois tia Elvira parecia mais com o meu pai em termos daquela bondade! E toda vez que ela me via, agradecia pelo plano de saúde que pagava para ela. Tia Elvira morreu aos 95 anos e deixou grande saudade em todos nós.

Já na juventude, uma pessoa especial iria marcar a vida e, depois, povoar as lembranças de Júlio: vovô João Cabizuca, pai de seu Luiz.

Vovô João Cabizuca era uma pessoa superespecial. Posso dizer que convivi muito proximamente com ele desde o final de 1956, quando eu já era um rapaz de 18 anos, até sua morte, em 1971. Desde rapazinho, vovô trabalhou na construção da estrada de ferro que ligava BH a Cruzeiro, no estado de SP, passando pela serra da Mantiqueira. Ele e minha avó, Maria Rita Cabizuca, tiveram oito filhos, sendo duas mulheres: a mais velha de todos os filhos, tia Evarista, que viveu 101 anos, e a mais nova, tia Elvira, que foi a última a morrer, em setembro de 2012.

Vovô João foi comerciante em Pouso Alto e dono de um pequeno hotel, onde todos os seus filhos trabalharam. Lembro-me bem da primeira vez em que meus avós vieram a BH, nós morávamos na casa da Rua Buarque de Macedo, 75. Um passeio inesquecível que fizemos foi a ida à Igreja do Padre Eustáquio para visitar o túmulo do referido padre, que havia morrido recentemente e era muito querido.

Desde aquela época, Padre Eustáquio tornou-se, para mim, a imagem do homem dedicado aos mais pobres, aos enfermos,enfim, aquele que doou a sua vida ao próximo. De alguma forma, sempre vi meu pai também com esse propósito, mas tendo ainda uma família para criar. O significado desses dois homens, para mim, é fortíssimo.

Lembranças à parte, Júlio foi se afastando daquela relação de meninos de férias em São Lourenço. Mas a cidade nunca saiu do seu coração. A ponto de, muitos anos mais tarde, em 1987, ele comprar um apartamento lá, para onde não deixa de ir quando tem um tempinho. Nem que seja para sentir o cheirinho de estrume nas ruas.



Vida nova no Municipal

Chegara o momento de mudar de escola e encarar o ginásio. Júlio relembra que era um aluno médio e que não vivia só para estudar. Mas já tinha uma boa base de estudos e não teve dificuldades para passar no exame de seleção para o Colégio Municipal Belo Horizonte, que funcionava dentro do Parque Municipal.

À época, a maioria dos seus colegas foi para o Colégio Arnaldo, uma escola particular que tinha boa fama na época e que funcionava no prédio onde está até hoje, na Praça João Pessoa, esquina com a Avenida Brasil.

Meu pai optou pelo Colégio Municipal, pois sabia que os professores de lá eram reconhecidamente muito bons. E era o ginásio público mais próximo de minha casa. Eu tinha de fazer o exame de seleção, e quem me aplicou foi o professor Horta (que, por sinal, tinha sete filhas, todas chamadas Marias).

Fui aprovado por ele. Iria estudar um ano, mas me preparando para fazer o chamado teste de admissão, uma espécie de vestibular para acesso ao ginásio nas escolas públicas e que metia medo em todo mundo.

Júlio se divertia com um detalhe nas viagens de trem. Durante o dia, todos viajavam nos bancos normais. Acima das poltronas, havia camas, que ficavam recolhidas no teto durante o dia. À noite, o chefe do trem vinha e abaixava as camas para os viajantes dormirem, e havia uma escadinha para as pessoas subirem.

Era com esse detalhe que começava a história divertida. Na hora de comprar o bilhete, o passageiro tinha de escolher o leito superior ou o leito inferior.

Júlio recorda: “Em geral, quem tinha dinheiro para ir para uma estação de águas, naturalmente escolhia o leito superior, achando que era mais luxuoso. Quando descobria que era o contrário, pela dificuldade de acesso e maior desconforto, costumava virar confusão. Muitos passageiros, às vezes idosos, diziam: Mas eu vou ter de dormir lá em cima??”

Na prática, o chefe do trem sempre dava um jeito de contemporizar e resolver a questão.

A mudança do Grupo Escolar Barão de Macaúbas para o Colégio Municipal de Belo Horizonte ajudou a ampliar o universo de conhecimentos do jovem estudante. Afinal, ele saíra de uma escola onde uma só professora dava todas as aulas e passou a ter diversos professores, cada um em sua disciplina.

Era um timaço. Pessoas da melhor estirpe, na época, foram meus professores no ginásio e em parte do científico. Lembro-me, com carinho, de muitos professores e professoras, como a de português – dona Maria Luíza Ramos, que era famosa e muito bonita. Aos 15 anos, eu era apaixonado por ela e a chamava de Marilu. Ela me dava muita carona, quando ia da escola para o banco, em seu Citroen – um modelo em que a porta abria para frente, tipo DKV. Anos mais tarde, ela foi a nossa paraninfa.

Tinha também Onofre, de geografia; Simões, de desenho; Sardinha, de latim; o Oswaldo Machado, de educação física; José dos Prazeres, de matemática; José Ernesto, de geografia; Amaro Xisto de Queiroz, de história; Henrique Morandi, também de matemática; José Raimundo Rios, fantástico professor de química; José Israel Vargas, de física, e que, mais tarde, se tornou ministro de Ciência e Tecnologia; e Gérson de Britto Mello Boson, professor de francês. Todos liderados por Raul Muradas e Guilherme Lage, diretores do colégio.

Era mesmo um grande time que deixou muita saudade. O Colégio Municipal pagava os melhores salários de professores em Belo Horizonte. E, mesmo assim, muitos colegas foram para o Colégio Arnaldo.

Em 1950, Júlio passou no teste de admissão. Todos os dias, ele ia a pé de casa, no bairro Floresta, para o Parque Municipal, onde funcionava o colégio em que estudou até 1954. Naquele ano, a Prefeitura resolveu que não poderia existir uma escola dentro de um parque e decidiu transferi-la para o bairro Lagoinha (ao lado do conjunto habitacional do IAPI), para onde Júlio também foi transferido.

Na prática, a determinação da Prefeitura não foi adiante, e o colégio que funcionava no Parque se transformou na Escola Municipal Imaco (hoje localizada na Rua Gonçalves Dias). Mas, naquela época, Júlio não estava mais por conta só dos estudos, pois o mundo do trabalho já batia à sua porta.



O universo do trabalho

Apesar de se divertir como toda criança e brincar muito com os amigos de rua e colegas de escola, o jovem Júlio, desde muito cedo, já levava consigo uma preocupação que o acompanharia por toda a vida. Uma percepção muito importante, que pode ser resumida pela frase: “É preciso ajudar em casa”. Mesmo muito jovem, aos nove ou dez anos de idade, ele já sentia a obrigação de contribuir financeiramente nas despesas domésticas. Afinal, a renda da casa vinha apenas do salário modesto do pai.

Eu me sentia responsável pela vida dos meus pais. Foi a primeira responsabilidade que senti ainda criança. Sabia que teria de batalhar e ganhar dinheiro para cuidar deles.

Décadas mais tarde, o já empresário Cabizuca cita o escritor português José Saramago para se referir àquele sentimento genuíno de responsabilidade: “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória, não existimos; sem responsabilidade, talvez não mereçamos existir”.

E a primeira oportunidade de assumir sua responsabilidade surgiu em 1950, quando tinha 12 anos. Chegaram as férias de final de ano, e o menino Júlio ficou sabendo que um grande magazine da cidade, já conhecido como Lojas Americanas, estava contratando garotos para fazerem entregas de Natal. Como a loja não tinha caminhão de entrega, o serviço era feito de ônibus. E era preciso fazer a entrega na hora marcada, para manter em segredo os presentes – como pequenas bicicletas e velocípedes – que iriam alegrar a noite de Natal de muitas crianças.

Anos mais tarde, ele não se lembrava mais do valor que ganhava trabalhando na loja, mas não se esqueceu do que recebia nas casas, após a entrega: “Eles me davam sempre alguma coisa, como café, banana ou outras frutas. Eu gostava, pois eram pessoas boas”.

Esse primeiro trabalho remunerado permitiu que Júlio tivesse contato, pela primeira vez na vida, com as famílias mais ricas de Belo Horizonte e seus casarões bem localizados. Ele fazia entregas nos bairros de Lourdes, Santo Agostinho e na região do Minas Tênis Clube.

Mas o primeiro emprego de verdade, no qual seria “fichado”, surgiu alguns anos depois, vindo por indicação política, quando o rapaz já completava quatorze anos. Tia Neném, prima de sua mãe, era casada com o médico Édson Álvares da Silva, que fora secretário de Estado no governo de Benedito Valadares. Ele indicou o rapaz para um cargo de principiante no Banco Hipotecário Agrícola do Estado de Minas Gerais, que ficava na Avenida Amazonas, na Praça Sete.

Júlio começou a trabalhar como contínuo numa segunda-feira. Foi quando viu, pela primeira vez, um cartão de ponto – e com o seu nome. Naquela época, os contínuos chegavam cedo e tinham de espanar os móveis. Além disso, ficavam à disposição dos gerentes para outros serviços.

O garoto estava empolgado, pois era tudo muito novo para ele: do ambiente de trabalho à perspectiva de ganhar dinheiro e ajudar em casa.

De entrega em entrega, Júlio ia descobrindo detalhes do dia a dia das famílias mais abastadas de Minas Gerais. Enquanto observava tantas novidades na cidade, com uma nova entrega nas mãos, dentro de um lotação, ele não poderia imaginar que, quarenta anos depois, o professor Cabizuca estaria morando bem ali por onde passava, em um apartamento na Praça da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, no bairro Santo Agostinho.



Coragem e determinação

Apenas uma semana depois, porém, na segunda-feira seguinte, seu cartão de ponto não estava mais lá. Ao indagar por ele, Júlio foi orientado a procurar o Departamento de Pessoal.

Infelizmente, as notícias não eram boas: ele estava demitido. Alguma coisa tinha dado errado com a indicação política que havia sido feita. Júlio entendeu a situação, mas não se deu por vencido. Muito pelo contrário; ele estava apenas começando sua vida profissional e, naquele mesmo dia, fez uma espécie de pacto consigo mesmo.

Ao sair do banco, estava meio desorientado, pois foi tudo muito de repente. Queria arrumar logo outro emprego. Minha mãe ficou triste, pois viu que tinha alguma armação ali. Foi quando eu olhei para mim mesmo, respirei fundo e tomei uma decisão: “Nunca mais serei demitido; nunca mais!”

E a determinação de Júlio acabou se tornando verdadeira: ele nunca mais passou por outra demissão em toda a sua carreira.

Naquele momento, contudo, o jovem não estava disposto a perder tempo. E logo veio nova oportunidade. Um colega um pouco mais velho que ele, Ney de Oliveira e Silva, trabalhava em outro banco, no Centro de BH, e sugeriu que ele fosse bater à porta. Era o Banco Crédito e Comércio do Estado de Minas Gerais, pertencente à tradicional família Negrão de Lima.

Dona Carmen também deu uma ajudinha ao filho, pois ela conhecia dona Geni, esposa de Otacílio Negrão de Lima, que era de Lavras. Ela deu uma instrução que foi muito importante para o filho: “Pode dizer lá que eu e seu pai gostamos muito da família Negrão de Lima e sempre votamos neles”.

Após o conselho precioso, com a coragem e a determinação que já lhe eram peculiares, Júlio foi mesmo bater à porta do banco. O faro profissional que já aflorava nele fez com que procurasse ninguém menos que o presidente do banco à época, o senhor Oscar Negrão de Lima.

Chegando à sede do banco, aquele rapaz miúdo foi recebido pela secretária do presidente, que lhe pediu que escrevesse em um papel muito pequeno, como se fosse uma ficha, o que ele queria com o presidente. Júlio escreveu duas palavras no espaço minúsculo: Pedir emprego.

O diálogo que se seguiu poderia ter sido criado para uma peça de teatro. Mas era verdadeiro e significava o primeiro das centenas de capítulos reais da carreira de Júlio Cabizuca. Aquele momento nunca mais lhe saiu da lembrança.

De repente, ele estava de pé, numa sala grande, diante de um homem importante, confortavelmente sentado do outro lado de uma ampla mesa de madeira.

– E então, menino, estou sabendo que você está querendo emprego. Por que veio aqui?

– Bem, tenho muita vontade de trabalhar. Minha família veio do interior e tem dificuldades. Estou estudando e preciso de um emprego...

Júlio disse que estava ali por sugestão do amigo Ney, que trabalhava no banco, e de sua mãe, que conhecia dona Geni, a cunhada dele, dos tempos de Lavras.

– Pois bem, eu estou mesmo precisando de um contínuo.

– Ah, doutor, e tem mais: nós conhecemos bem sua família e sempre votamos em vocês nas eleições!

Sem pensar muito, o presidente do banco chamou a secretária na outra sala:

– Arrume uma mesinha para ele e coloque no corredor. Júlio comemorou por dentro – o emprego estava garantido!

Para quem tinha batido à porta do banco sem nada a oferecer, a contratação poderia parecer mentira, até porque ela ocorreu bem num dia primeiro de abril, em 1953, antes de Júlio completar quinze anos.



Ah, o sanduíche do Tip Top!

Como previsto, o rapaz foi instalado numa mesinha, no corredor, perto da porta da sala da presidência, e ganhou o cargo de contínuo. Fazia tudo o que a secretária pedia e, aos poucos, foi se ambientando com o local de trabalho. O próprio doutor Oscar lhe passava tarefas bem pessoais, como sair para fazer pequenas compras (a banana-prata de que o presidente tanto gostava, os biscoitos, a pasta de dentes e outras pequenas necessidades de casa). Depois que fazia as compras, Júlio as levava diretamente para a esposa do doutor Oscar, no casarão onde moravam, na Avenida Amazonas, perto do Colégio Santo Agostinho.

Como todo rapaz esperto, Júlio logo aprendeu a dar um jeito de conseguir economizar algum dinheirinho.

O doutor Oscar me dava o dinheiro para a condução, que seguia pela Avenida Amazonas, da Praça Sete ao Colégio Pio XII, na esquina de Contorno. Mas eu nunca pegava o ônibus. Ia a pé, bem rapidinho. Deixava os pacotes com a esposa dele e me picava de volta para o banco! Era tudo uma linha reta.

Com isso, eu economizava o dinheiro do ônibus, que já tinha um destino certo. Eu sempre passava em frente daquele tradicional restaurante alemão, o Tip Top, na Rua Espírito Santo, perto da Loja Guanabara. Lá, eles tinham um sanduíche chamado misto frio. Nunca me esqueci dele!

Era feito com pão de forma sem casca e recheado com aqueles salames importados. Tudo fresquinho, feito por umas senhoras alemãs muito gentis. Os sanduíches ficavam expostos em um caixotinho de vidro na entrada. Me apaixonei por eles desde a primeira vez em que vi, antes mesmo de provar.



Ser mais útil

Certo dia, em maio de 1954, um ano após sua contratação, Júlio teria um aumento de cem por cento no salário. Na época, recebia meio salário-mínimo, por ser menor de dezoito anos. Passou, então, a ganhar o dobro.

Não entendeu bem o que ocorria, mas logo percebeu que não era uma promoção pessoal e nem uma iniciativa só do banco onde trabalhava.

Apesar de muito satisfeito com o aumento no salário, o jovem contínuo teve, diante daquele anúncio significativo para a economia do País, uma reação muito particular, daquelas que, no fundo, diferenciam os bons profissionais. Sentado em sua mesinha de trabalho, falou para si mesmo: “Preciso fazer jus a esse aumento de salário. Tenho de ser mais útil para o banco”.

A situação era até curiosa, pensou ele. No primeiro emprego, foi demitido após uma semana de trabalho; no segundo, pouco tempo depois, seu salário logo dobrara de valor. Foi nesse momento que uma importante ferramenta de trabalho entrou para sua vida profissional. E esse instrumento teria um papel determinante dali para frente, como um diferencial de mercado para um jovem de apenas dezesseis anos: uma máquina de escrever.

Ao voltar ao governo pela via do voto popular, em 1950, Getúlio Vargas colocou em prática uma política de aproximação com os movimentos sindicais, com apoio do seu ministro do Trabalho, João Goulart, e críticas dos opositores. Getúlio ia, a cada dia, antecipando demandas dos trabalhadores e forçando os empregadores a fazerem concessões.

Um dos momentos marcantes e tensos de seu segundo governo ocorreu em 1º de maio de 1954, Dia do Trabalhador, quando o presidente anunciou um reajuste de cem por cento no valor do salário-mínimo, passando-o de 1.200,00 cruzeiros para 2.400,00 cruzeiros, a título de compensação à elevação do custo de vida no País.

Júlio já tinha percebido, na rotina do banco, que aprender datilografia e, se possível, tornar-se um exímio datilógrafo, seria muito bom para sua carreira. Ele notara que todo funcionário mais graduado tinha uma máquina de escrever na mesa ou próximo dela. Quando precisava, era só puxar.

Tornar-se datilógrafo passou a ser, então, a forma mais rápida e objetiva de fazer jus ao aumento de cem por cento no salário.



Valendo quanto ganho

Com a proximidade das férias escolares, ele começou a colocar em prática seu plano, que já poderia ser chamado de qualificação profissional.

Ele sabia que, no Centro de BH, na sede do Senac, na Rua Curitiba, funcionava um curso de datilografia gratuito. Lá, ficou conhecendo a professora, dona Efigênia, que o colocou numa turma pela manhã, durante as férias do mês de julho.

Júlio tinha direito a uma hora de aula por dia, mas seus planos iam muito além. Como trabalhava no banco de meio-dia a seis, de segunda a sexta-feira e, à época, os bancos abriam também aos sábados, de nove a meio-dia, ele teria livres todas as manhãs da semana.

A sala tinha quarenta mesas com máquinas. Ele perguntou a dona Efigênia se poderia ficar além do seu horário, caso tivesse máquina sobrando. Ela ficou na dúvida, mas acabou dizendo que sim.

Eu chegava às sete da manhã, na hora em que abria o curso, e esperava todos se sentarem. Sempre sobravam alguns lugares na sala. No horário seguinte, passava para outra máquina. Como eram todas iguais, ficava mais fácil.

E assim aconteceu. Das sete às oito, ASDFG... Das oito às nove, ÇLKJH... E isso ia até as onze horas, de segunda a sexta, ao longo de todo o mês das férias.

Dona Efigênia não acreditava. Com o tempo, ela ficou minha camarada. No final de um mês, eu aprendi e estava pronto! Então, pedi para a secretária do doutor Oscar colocar uma máquina na minha mesa e continuei treinando. Arrumaram uma maquininha para mim.

O pessoal passava e me via datilografando. Como o banco tinha muito serviço de datilografia, logo foram aparecendo os pedidos.

Aí, pensei: “Opa! Agora já estou valendo quanto ganho!”

Depois de um tempo, tive a percepção de algo que eu buscava: o doutor Oscar não tinha mais apenas um contínuo em frente à sua sala.



Com o bolso cheio

Passado pouco mais de um ano trabalhando no banco, ele foi surpreendido por uma informação: ia entrar de férias. Ele não pedira nada e, naquele início da vida de trabalho, nem tinha muita noção daquele direito.

Recebi uma dinheirama – em dinheiro vivo! Pus tudo aquilo no bolso e pensei: “Deus do céu, o que vou fazer com tudo isso?”

Naquela mesma tarde, ao sair do banco com os bolsos recheados, Júlio viveu dois episódios que ficariam para sempre em sua lembrança. De cara, foi até uma sapataria famosa, na Avenida Afonso Pena, perto do Café Palhares, onde já estivera várias vezes, namorando um par de sapatos muito fino que ficava exposto na vitrine.

Era um autêntico Scatamacchia de origem italiana, modelo social, com acabamento em furinhos nas emendas dos couros. O modelo custava 550,00 cruzeiros, ou seja, quase todo o seu salário de 600,00 cruzeiros (antes do aumento de 100% de 1º de maio de 1954).

Logo depois da compra, Júlio começou a achar que fizera uma extravagância muito grande com seu dinheiro inesperado. Mas, ao mesmo tempo, lembrava que aquele era seu sonho de consumo. E, afinal, a causa era das mais justas, como confessou décadas mais tarde: “Eu queria muito sair bem calçado para me apresentar a uma certa mocinha que estava querendo namorar”.

Ainda no Centro da cidade, por volta de uma da tarde (sempre apalpando o bolo de dinheiro no bolso.), ele se perguntou: “O que vou fazer agora?” Ao passar em frente ao Cine Glória, ainda na Avenida Afonso Pena, viu que a próxima sessão começaria às duas da tarde. Era uma comédia com o famoso ator Jerry Lewis. Pagou o ingresso e entrou um pouco antes de o filme começar.



Não era meu lugar

Logo percebeu que havia muitas pessoas ali, falando alto e conversando bobagens, às gargalhadas. Aquilo começou a incomodá-lo. Era um dia de semana, a primeira tarde das férias do banco, e aquele pessoal não tinha jeito de quem trabalhava. O incômodo foi virando um mal-estar insuportável.

Aí, eu pensei: “Gente, onde estou misturado? Aqui não é meu lugar”. Fui ficando de baixo-astral, com uma grande perda de energia. Já havia comprado um sapato que tinha custado uma fortuna, e estava ali, como se fosse um vagabundo no meio daquela gente, às duas da tarde, num cinema. Não aguentei e, logo depois que a sessão começou, saí e fui embora.

Em casa, foi logo mostrando o sapato para a mãe, dizendo o quanto havia custado e falando sobre o dinheiro das férias, num misto de satisfação e medo de levar uma bronca. Mas, para seu alívio, dona Carmen só exclamou: “Nossa, que sapatos lindos! Ah, não importa o preço, pois você merece!”

O Scatamacchia durou muito tempo. Com ele, Júlio foi a muitos bailes e festas, sempre impressionando certas mocinhas.

Júlio ganhou o dia. Aquela reação lhe deu uma grande sensação de alegria e lhe tirou todo o peso das costas.

As duas passagens referentes às férias de Júlio – uma da escola e outra do trabalho – ajudam a entender como aquele jovem de espírito empreendedor ia construindo sua trajetória de vida.

Os seus momentos de lazer e de gastar dinheiro (tão merecidos, como reconheceu a mãe) não poderiam ser desperdiçados, como parecia ocorrer naquela tarde, no cinema. Pelo contrário, deveriam ser bem empregados, sempre visando à profissionalização e à empregabilidade, como ocorreu durante o curso intensivo de datilografia, sob o olhar meio espantado de dona Efigênia. Ela certamente percebeu, a seu modo, que aquele jovem era mesmo um ponto fora da curva.



Sumoc e a máquina elétrica

Com o tempo, Júlio foi conseguindo, cada dia mais, fazer jus ao salário no banco, como era sua preocupação. E, muito rapidamente, passou a receber os serviços de datilografia mais importantes da instituição, tornando-se o melhor funcionário da área.

Afinal, ele não se tornara apenas um exímio datilógrafo, como era sua meta, mas também tinha um domínio de português raro para a função – fruto de muito estudo e esforço nas aulas da querida professora Maria Luíza Ramos.

Ele assumiu, por exemplo, o trabalho de datilografia de um dos documentos mais importantes do banco, que era o relatório mensal a ser enviado à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), a autoridade monetária do País que foi substituída pela implantação do Banco Central, em 1965.

Eu datilografava aquele relatório, que tinha mais ou menos seis cópias, com carbono. Era um maço de folhas que já vinha pronto. Só mais tarde vim saber o que era a Sumoc, quando já estudava engenharia e ela foi substituída, durante a Revolução, pelo Banco Central.

Júlio foi, inclusive, um dos primeiros funcionários a trabalhar com as então revolucionárias máquinas elétricas – primeiro, as tradicionais e, depois, as mais modernas, com esferas que giravam 360º, sem a necessidade de se ter o carro (estrutura móvel onde se coloca o papel nas máquinas comuns).

As primeiras máquinas elétricas que surgiram em Minas Gerais foram as Olivetti. Só depois vieram as Remington. A grande vantagem delas era o fato de você não precisar forçar nada. Era só um toque nas teclas. Agora, as com esferas eram um espetáculo! Fico até arrepiado, só de lembrar!

Na época, Júlio pesquisou a origem das máquinas com esfera e descobriu que elas foram desenvolvidas durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, era comum os militares terem de datilografar relatórios e documentos em submarinos, navios e aviões que, obviamente, balançavam muito. Esses movimentos faziam com que o carro das máquinas se movesse repentinamente para um lado e para outro. Com as máquinas com esfera, esse problema deixou de existir.



O menino que vendia lotes

Entre os anos 1955 e 1958, Júlio cursou o científico. Começou essa nova fase de estudos no próprio Colégio Municipal, onde fizera o ginásio. Mas um desentendimento com um professor o levaria a mudar de escola, sendo transferido para o Colégio Batista, onde cursou o segundo e o terceiro ano já se preparando para o vestibular.

Mas foi um período também intenso no trabalho. Em 1954, ele deu início a uma nova atividade. O banco onde trabalhava lançou um empreendimento imobiliário na região do bairro Padre Eustáquio. Era o loteamento Vila Celeste Império.

Júlio estudava pela manhã e trabalhava à tarde, de segunda a sexta-feira; aos sábados, trabalhava pela manhã. No tempo livre, ou seja, nas tardes de sábados e aos domingos, passou a atuar como corretor no empreendimento.

Eu tinha uma mesinha, daquelas de lata, de abrir e fechar, além de uma cadeira e uma sombrinha que, durante a semana, ficavam guardadas em um botequim próximo. Eu montava a mesinha e colocava a planta em cima, com os vários terrenos disponíveis.

E não é que vendi muito lote ali? Tinha jeito para as vendas!

Lembro-me, por exemplo, de um senhor de mais idade que passou lá, de terno e gravata, vindo de Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro. Ele achou estranho ver um menino vendendo lotes. Logo expliquei que também trabalhava no banco responsável pelo empreendimento.

Depois de uma boa conversa e de uma olhada nos terrenos, ele disse:

– Olha, eu não ia comprar lote aqui não, mas mudei de ideia, pois gostei muito de você.

O senhor comprou não apenas um, mas dois lotes na mão daquele menino corretor.



Casa própria

E assim Júlio foi engordando seu pé-de-meia, sempre com uma convicção: “Eu não poderia perder a oportunidade de ganhar dinheiro. Sabia que meus pais precisariam de ajuda”.

E aquela sua percepção mostrou-se certeira. À época, sua família foi informada de que a casa alugada onde moravam iria ser leiloada. Eram diversas moradias que formavam uma espécie de vila, que fora construída, anos antes, por uma fábrica de tecidos para seus trabalhadores. Só que a empresa faliu, e as casas, portanto, iriam a leilão.

Seu Luiz tinha comprado um lote no bairro Renascença. Júlio já ajudara a pagar as prestações, que não eram altas. Surgiu, então, a oportunidade de eles comprarem a própria casa onde viviam, pois os moradores tinham a preferência na compra.

O plano do pai era dar o lote de entrada e negociar o valor restante com o Banco Hipotecário e Agrícola, com base na chamada Tabela Price, que fixava os juros imobiliários da época. Confiante, Seu Luiz foi ao banco, mas voltou desiludido. Indagado por Júlio, ele explicou: “Filho, nós não temos como comprar a casa, pois, além da entrada e das prestações, teríamos de pagar o selo para o governo. O valor é muito alto, e não temos o dinheiro”.

O selo era uma das formas de pagamento dos tributos à época. Como o governo não tinha como recolher todos os impostos, as pessoas pagavam o tributo por meio da compra de selos dos Correios, emitidos pelo governo. Colavam tudo em um documento que, depois de oficializado, tornava a operação legal. Júlio nunca tinha ouvido falar sobre o tal do selo, mas não titubeou: “Pai, eu tenho o dinheiro. Vamos pagar o selo e comprar a casa”.

O jovem tinha boas economias, que eram fruto do trabalho no banco e da venda dos lotes. Décadas mais tarde, Júlio recorda como foi importante, e também simbólica, aquela oferta que fez ao pai.

Para mim, oferecer o dinheiro para o meu pai foi tudo.

Ele já estava muito pressionado para resolver o problema da moradia. É claro que eu também sentia aquela pressão. Mas papai era um homem simples e talvez achasse que não poder comprar a casa seria algo natural.

Afinal, quantas vezes ele não pôde fazer alguma coisa na vida? Eu já tinha ajudado na compra do lote do bairro Renascença, onde nunca tinha ido, pois era muito longe.

Então, finalmente, nós compramos a casa da Rua Buarque de Macedo, número 35, na Floresta!

E o negócio não poderia ter sido melhor para os Cabizucas. Como a casa era geminada, com duas moradias de parede-meia, eles também usaram as economias para fazer algumas obras, ampliando a parte onde moravam e reformando o outro lado, que ficou menor, mas com entrada independente, pronto para ser alugado.

No final das contas, eles alugaram a outra morada por 2.500,00 cruzeiros. E a prestação da casa ficava em cerca de 2.100,00 cruzeiros. Fazendo as contas, Júlio ficou animado e disse aos pais: “Vamos comprar mais uma? A gente aluga também!”. Mas logo ouviu a resposta da mãe, sempre pé no chão: “Que é isso, menino, ficou doido?”



Remuneração justa

Dois episódios, ocorridos naquela época do trabalho no Banco Crédito e Comércio do Estado de Minas Gerais, demonstram um pouco da personalidade de Júlio em relação a dois aspectos fundamentais do universo profissional: sua determinação em ser muito eficiente em suas tarefas e a convicção de merecer ser remunerado de forma justa e condizente com seu empenho. Como ele mesmo observou anos depois: “Eu já era uma pessoa que sabia o meu valor”.

E as demandas internas foram surgindo. Um dia, o advogado Cláudio Andrade, do Departamento Jurídico, o chamou para fazer um trabalho extra, fora do banco. Era final de ano, e o doutor Cláudio defendia um frigorífico contra um processo que implicaria o pagamento de uma multa avassaladora. Ele precisava apresentar a defesa no dia dois de janeiro do ano seguinte. Veio a combinação: “Júlio, você quer trabalhar comigo? É algo muito importante, pois preciso de alguém para datilografar muito bem toda a defesa, em um tempo muito curto. Mas é para trabalhar no Natal e no ano-novo. Praticamente morar lá em casa”.

O jovem não pensou duas vezes: “Doutor, eu estou pronto”.

Então, fui para o escritório na casa dele. Tinha máquina de escrever e banheiro, inclusive com chuveiro. Era lá que eu iria morar por uns dias. Era mesmo uma tarefa grande, para ser datilografada com várias cópias, usando carbono. Eu acordava e começava a trabalhar sem parar. O dia inteiro. A mulher dele levava comida para eu almoçar e jantar. Comia e continuava a datilografar.

Foi um trabalho muito cansativo, mas o fato é que acabei até antes do prazo, ou seja, antes do réveillon. O doutor Cláudio leu tudo com atenção. Não tinha um erro! Ele não teve de corrigir nada. Estava pronto, com tudo certinho: aquelas formas de dividir as sílabas no final de cada linha, a pontuação e o português correto.

Terminei e fui para casa dormir. Estava exausto e nem quis saber de comemoração de fim de ano. Nós nem combinamos o preço.

Júlio não lembra se o advogado ganhou a causa, mas aquilo não era de sua alçada. Seu serviço estava pronto. Passaram-se alguns dias até que doutor Cláudio o procurou no banco e disse:

– Júlio, precisamos acertar aquele serviço. Quanto você acha que deve ser?

– Ah, doutor, é difícil colocar preço naquele trabalho. Acho que ninguém melhor do que o senhor, que é advogado, para saber o que o trabalho vale.

Ocorreu, contudo, de o advogado oferecer uma quantia que Júlio considerou muito pequena. Ele, então, propôs:

– Doutor, foi um trabalho muito intenso, de muitos dias, sem pausa, por isso, acho que devo receber o dobro do meu salário mensal.

– Mas, Júlio, não está muito?

– Não, eu acho que é isso que vale, doutor.

Dias depois, o advogado pagou o que Júlio propôs, sem reclamar e sem criar um clima ruim.



Função de contínuo, papel de chefe

O outro episódio ocorreu quando o banco tinha mudado de donos. Os Negrão de Lima venderam a instituição para um grupo representado por duas famílias – a Araújo e a Guimarães.

Júlio já era bem mais experiente. Estava ainda na função de contínuo, mas já no rito de passagem para se tornar funcionário. E foi trabalhar na seção de imóveis, a mando de um dos novos diretores.

Ele era subordinado direto de um senhor mais velho, chamado Rafael Savino, que lhe proporcionou vários aprendizados. Entre outros conselhos, costumava dizer ao jovem aprendiz: “Se um dia você tiver dinheiro, nunca empreste para parente. E nem seja avalista nem de filho. Isso cria problema para o resto da vida. Se puder, dê o dinheiro, mas não empreste”.

Entre uma tarefa e outra, Júlio ia absorvendo tudo o que ele dizia. Mas, na seção, havia outro funcionário, um jovem chamado Marcos, que não gostava de trabalhar. “Era um grandalhão, que queria que o mundo acabasse sem fazer barulho para não atrapalhá-lo”, recorda.

A seção era relativamente nova e administrava os recebimentos de aluguéis de imóveis em BH. A carteira de negócios era formada por proprietários que contratavam o banco para alugar casas, receber aluguéis, cobrar atrasados etc.

Eles também faziam cadastros de pessoas interessadas em alugar ou comprar imóveis, dando o aval da seção para a direção do banco. Aos poucos, Júlio foi entendendo a lógica daquele trabalho e se afeiçoando a ele. Começou a conhecer também a realidade do mercado e dos negócios bem-sucedidos ou fracassados. Assim como os reais interesses de um banco nessas operações.

Eu vi, trabalhando ali, muito milionário quebrar. Lembro-me de uma família que mexia com mármore e granito. Eles tinham um palacete na Rua Sapucaí. Os filhos andavam de Impala e outros carros importados. De repente, eles perderam tudo. Antes, os gerentes os recebiam muito bem, com cafezinho e tudo. Depois, o tratamento mudou.

Mas o fato é que Júlio já ajudava o senhor Savino a fazer as fichas dos aluguéis mensais que recebiam, pois os inquilinos iam diretamente à seção deles, no banco, para pagar. E também foi aprendendo a analisar os cadastros, levantando quem tinha ficha suja no banco etc.

Até que, um dia, o senhor Savino adoeceu e teve que se afastar do trabalho. E Marcos continuava lá, sem querer fazer nada. Obviamente, Júlio percebeu, de imediato, a janela de oportunidades que se abria diante dele. E passou a criar alguns procedimentos bem práticos, como preparar, com antecedência, as fichas mensais de recebimento de aluguel, pois isso agilizava o atendimento e evitava até filas na seção.

O procedimento adotado por ele tornou mais dinâmicas as cobranças em atraso, agilizando os contatos com inquilinos. Nos casos mais graves, fazia logo a comunicação de cobrança, pegava a procuração e levava direto para o setor jurídico tomar as providências rapidamente.

Ao começarem a notar que a seção estava mais ágil, os donos dos imóveis ficaram bem mais satisfeitos. Havia, por exemplo, dois irmãos da Família Piana que eram donos do Edifício Rio Branco, na Avenida Santos Dumont, inteiramente formado por salas de aluguel.

Eu sabia de cor a situação de todas as salas. Os irmãos Piana gostavam de mim porque eu prestava contas para eles de todo o prédio. Quem estava inadimplente, quem estava em dia etc. Todo final de ano, eles mandavam uma cesta de Natal lá para casa.

Na outra ponta, Júlio prestava contas diretamente para o diretor do Setor de Imóveis. Criou, por iniciativa própria, uma espécie de balancete mensal da seção, no qual listava os valores das comissões que o banco recebia com os aluguéis e os custos do setor, incluindo o salário dele e o de Marcos; assim,demonstrava a produtividade e a lucratividade da seção. O diretor não pedira nada, mas ele passou a fazer esses registros.

Ou seja, na prática, o contínuo da seção se transformou no gestor da carteira imobiliária do banco.



A gratificação

Evidentemente, Júlio tinha a expectativa de ser recompensado por todo o seu empenho na seção. Foi quando ficou sabendo, por meio do colega Hélio, chefe do Cadastro, que o banco havia dado aos chefes uma gratificação de final de ano no valor de 5.000,00 cruzeiros. Era a primeira vez que ouvia falar de gratificação dada pelo banco. Ele resolveu mexer seus pauzinhos.

Determinado, Júlio foi bater à porta do diretor:

– Fiquei sabendo que o banco deu gratificação para alguns funcionários. Eu não recebi.

O diretor deu um risinho de lado e disse:

– Mas você é um menino!

– Sim, sou um menino, mas o senhor sabe, sou eu quem cuida da seção imobiliária. Tenho todo o relacionamento com os donos dos imóveis e com os inquilinos.

– Mas aquela gratificação era só para os chefes.

– Bem, doutor, eu não sou chefe, mas gostaria que o senhor considerasse isso, porque sou eu que resolvo tudo lá.

O diretor amarrou a cara e respondeu apenas:

– Então, tá.

Júlio voltou para sua sala e continuou a trabalhar. Passados trinta dias, foi entregar o balanço do mês ao diretor e aproveitou para perguntar se ele pensara sobre o pedido da gratificação. Ouviu a resposta seca, mas cordial:

– Não, nem pensei.

Júlio estava preparado para ouvir aquilo. E já tinha tomado uma decisão:

– Doutor, então, o senhor pode arrumar outra pessoa para assumir a seção, porque não quero continuar lá. Vê aí outro lugar no banco para eu trabalhar. Eu volto para o serviço de datilografia, e o senhor põe o Marcos como chefe lá.

A resposta foi seca:

– Perfeitamente.

Uma semana depois, Júlio estava no setor de cobrança, datilografando títulos e fazendo outros serviços burocráticos.

E a seção de imóveis virou um pandemônio tendo o Marcos como responsável. Em poucos dias, estava tudo um caos! Os irmãos Piana foram me procurar. Expliquei que saí da seção e tal, sem falar na questão do dinheiro.

Aí, trouxeram do interior um gerente, o senhor Joel, que tinha estabilidade e não poderia ser mandado embora. Tentaram resolver dois problemas. Mas... coitado do senhor Joel! Era um homem bom, mas que não entendia nada da seção. Ele me procurava todo dia para pedir ajuda e falava: “Minha Nossa Senhora, eu não dou conta disto!”

Foi quando um dos irmãos Piana bateu à porta do diretor do Setor de Imóveis, dizendo: “Se o Júlio Cabizuca não voltar, vamos tirar todos os nossos imóveis do banco e levar para o [concorrente] Álvaro Maia”.

Os Piana sabiam o quanto o banco ganhava com a carteira de imóveis da família. Mas o diretor não afinou. O negócio ficou sério e virou um borogodó sem tamanho, com briga entre os donos do banco.

No final, o diretor amarrou a cara para mim para o resto da vida, mas me pagou a gratificação e me reconduziu à seção imobiliária.



Por merecimento

Os dois episódios ilustram como Júlio ia abrindo portas e fazendo com que o seu trabalho fosse reconhecido por merecimento – e não por amizade com as chefias ou subserviência a elas. Aquele rapaz, certamente, estava quebrando algumas regras nas relações de trabalho da época.

Afinal, deve ter sido a primeira vez no Brasil, nos anos 1950, que um contínuo de banco recebera uma gratificação restrita aos chefes. Ou que um jovem – mas eficaz – datilógrafo convencera um experiente advogado a pagar bem mais do que inicialmente propusera por um trabalho extra.

Pouco tempo depois, os sócios do banco se desentenderam, e a família Araújo resolveu sair da sociedade para fundar o Banco Nacional do Comércio. Como é comum nesses processos de separação, a direção do Banco Crédito e Comércio do Estado de Minas Gerais, onde Júlio trabalhava, ficou com receio de perder parte de seus funcionários, capitaneada pelos empresários em debandada e em processo de formação de uma nova equipe.

Por coincidência, Júlio anunciou que estaria saindo do banco, pois era hora de focar nos estudos, uma vez que estava decidido a prestar vestibular para engenharia. Evidentemente, a chefia não acreditou que o motivo era aquele. Logo surgiu o temor de que o funcionário especializado na carteira imobiliária (cuja eficiência ele fora obrigado a provar) fosse levar não só a expertise para o novo banco, mas, principalmente, a clientela, como os irmãos Pianas, que já haviam demonstrado o apreço ao jovem profissional.

Foi quando Júlio ouviu uma proposta feita com a objetividade peculiar do mundo dos negócios. Aquilo fez muito bem não só à sua autoestima, mas também ao seu bolso: “Se você realmente não for para outro banco, nós vamos lhe dar uma quantia significativa de dinheiro. Mas daqui a seis meses, para termos a certeza da promessa cumprida”.

Júlio saiu do banco, não foi para o concorrente, cumpriu o combinado e embolsou todo o dinheiro. Ele não se lembra do valor, mas tem a certeza de que foi bem maior que os 5.000,00 cruzeiros da famosa gratificação.

A recompensa recebida seria, um pouco mais tarde, o pé-de-meia necessário para Júlio se manter durante o tempo de preparação para o vestibular.

Antes de enfrentar o vestibular, contudo, Júlio dividiu os estudos no científico com o serviço militar.



O segundo sufoco

Aos dezessete anos, o jovem Cabizuca alistou-se no Exército. Meses depois, apresentou-se no 12º Regimento de Infantaria. Foi selecionado para o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR). Ele optou pela infantaria e serviu entre dezembro de 1957 e agosto de 1959.

Como as atividades do CPOR aconteciam apenas no período de férias escolares, entre 15 de dezembro e 15 de fevereiro, e em julho (além dos domingos, durante o período letivo), era possível conciliá-las com os estudos do científico.

Sua turma era formada por noventa infantes, mas ele não conhecia ninguém no grupo. Certamente, havia jovens de seu bairro, mas como sua rotina, à época, já era de muito estudo e trabalho, não se enturmava muito com a vizinhança.

Eu não conhecia ninguém ali. Havia um grupo, até significativo, formado por filhos de pessoas mais abastadas e de famílias influentes. Então, acabei me enturmando com alguns colegas do interior.

No dia a dia, eu ia cumprindo todas as atividades, como marchar, lidar com armas, praticar esportes e fazer atletismo. Marchar era mais fácil, pois nós já tínhamos esse tipo de treinamento no Colégio Municipal.

Havia certo revezamento entre os infantes na tarefa de comandar a tropa de vez em quando, a título de treinamento. Quando chegou sua vez, Júlio não teve dificuldades, devido à experiência com a rotina da marcha e com os respectivos comandos (“Direita, volver!”; “Meia-volta!”; “Esquerda, volver!”; “Pelotão, alto!” etc.).

O capitão, com certeza, percebeu essa aptidão e outras habilidades do jovem. Certo dia, ele perguntou ao grupo quem sabia datilografia, e o jovem Cabizuca se apresentou. Com a experiência que tinha no banco, datilografando os impecáveis relatórios da Sumoc, ele tirou de letra as demandas do capitão.

Para completar, Cabizuca saía-se muito bem nas provas, chegando a tirar total em muitas delas. Até que, um dia, o capitão disse para o grupo: “Desta vez, não vou divulgar o gabarito no mural, não. Vou pegar a prova do Cabizuca e pregar lá”.

Sem dúvida, esse destaque que eu tinha passou a incomodar alguns colegas da turma. Afinal, onde não há gente despeitada? Me lembro que diziam algo como: “Logo ele, que não é conhecido nosso, que veio lá da roça”.

Fora isso, ele não era muito notado no grupo, mas também não chegava a ser hostilizado. Até que, para sua surpresa, aconteceu um fato que o marcou para o resto da vida. O episódio guardou certa semelhança com o ocorrido entre ele e o aluno Pedro, que lhe roubava a merenda no Grupo Escolar Barão de Macaúbas. Em ambos os casos, houve a tentativa de humilhação pública e o enfrentamento de violência física.

Nós já tínhamos sido promovidos para o segundo ano de infantaria, e havia uma tradição de aplicar trotes nos calouros.

Só que, de repente, no meio de todos, um colega de turma, alto e muito forte, berrou: “Vamos dar um trote no Cabizuca!” Eu pensei, indignado: Querem me dar um trote?

Mas o tal colega, que devia fazer parte do grupo que não aceitava minha projeção como bom aluno, não vacilou e logo me agarrou com uma forte gravata e, em poucos segundos, estava me arrastando. O destino era um tanque para onde escorriam todos os dejetos de cavalo – do estrume à água usada para lavá-los.

Desesperado pela perda da respiração e a ameaça da humilhação iminente, agarrei violentamente sua genitália com a mão direita, que estava livre, e apertei e torci como se minha mão tivesse garras de aço. Ele me soltou, caiu gritando e eu continuei apertando, agora, com as duas mãos, como se eu quisesse arrancá-la.

Até que soltei. Ele chorava, não conseguia se levantar, e eu me afastei, diante dos olhares perplexos dos colegas. Acredito que muitos acharam que tivesse ocorrido uma briga comum.

Não houve nenhum desdobramento oficial em relação ao ocorrido, pois o episódio não chegou ao comando do Regimento e não se tornou uma ocorrência militar – permaneceu como uma ocorrência no âmbito apenas dos colegas.

Evidentemente, para Júlio, não fora mesmo uma brincadeira. Assim como não foi a briga com Pedro. Em relação aos episódios no Barão de Macaúbas e no CPOR, que guardam muitas semelhanças, Júlio reflete: “Situações que você não criou e que trazem arrogância, maldade e humilhação são intoleráveis. É preciso resistir diante delas, da maneira que for possível”.

Naquela época, o presidente Juscelino Kubitschek, que governou de 1956 a 1961, estava colocando em prática o seu Plano de Metas, que tinha o ousado desafio de consolidar um desenvolvimento de 50 anos em apenas cinco. As prioridades eram os setores de infraestrutura (notadamente rodovias, aeroportos e hidrelétricas) e a indústria local (com destaque para o setor automobilístico), ou seja, todos eles com grande demanda por engenheiros.



Opção pela engenharia

Ainda no final do científico, mesmo estudando e trabalhando, Júlio conseguia um tempinho para acompanhar o trabalho de um primo de sua mãe, Albano Azevedo, a quem ele chamava de tio. Ele e a esposa, Nilza, chegaram a morar com a família Cabizuca, enquanto esperavam a casa deles ficar pronta, no bairro Santa Tereza.

E, muitas vezes, Júlio acabou indo ao trabalho com o tio, pois ele era técnico em química no Instituto de Tecnologia Industrial (ITI), que ficava na esquina da Rua Guaicurus com a Rua da Bahia, próximo à Praça da Estação. Lá, Júlio acompanhava muitas experiências de química em laboratório, quando criou certa admiração pela área, o que acabaria influenciando na escolha da engenharia para prestar o vestibular.

Mas o que pesou de fato, em sua opção pela engenharia, foi a conjuntura do País, que vivia uma forte demanda por engenheiros.



Bomba em geometria

Alguns anos antes, o desentendimento que Júlio teve no Colégio Municipal acabou fazendo-o perder um ano letivo. E, indiretamente, contribuindo para a reprovação no primeiro vestibular que prestou para engenharia.

Era um professor que dava aulas com os pés em cima da mesa e era considerado um bonachão. Não sei por que cargas-d’água, resolveu pegar no meu pé e passou a me perseguir. Acabei perdendo o segundo ano. Como eu trabalhava e ganhava dinheiro, resolvi ir para o Colégio Batista, que era particular e ficava perto da minha casa. Lá, eu tirei tudo de letra. Mas não aprendi direito a geometria descritiva.

A falta de base em geometria descritiva valeu a Júlio a bomba no vestibular, que tinha prova específica daquela disciplina.

Aquela reprovação o fez lembrar a primeira – e única – demissão da vida, no início da carreira no banco. Mais uma vez, sua determinação entra em cena. Era hora de se concentrar e superar mais aquela barreira.

Já formado no científico, em 1958, era hora de se preparar para valer para prestar o vestibular pela segunda vez. Júlio se matriculou no melhor cursinho preparatório para o vestibular em Belo Horizonte – o Curso Mário de Oliveira, cujo dono, mais tarde, também faria parte da trajetória do jovem estudante.

Naquele momento, Júlio ainda não sabia que a geometria descritiva iria entrar para sempre em sua vida acadêmica. Anos depois, ele estaria dando aulas da disciplina e até escrevendo livro em coautoria com o engenheiro João Lucas Mazoni Andrade, um ex-professor importante, que também faria parte de sua história profissional e seria, anos mais tarde, ao seu lado, um dos fundadores do Pitágoras.



Método infalível

Júlio se recorda muito bem de sua rotina naquele ano.

Eu levantava cedo e ficava em casa estudando. Estudava muito – especialmente as matérias mais difíceis – até a hora do almoço. Depois, ia para a Praça Negrão de Lima, perto da minha casa. Lá, ficava caminhando e rememorando tudo o que havia estudado pela manhã. Andando e fazendo aquele exame mental, lembrando um ponto ou outro que tinha esquecido. Quando voltava, ia direto rever aquele ponto. E então me dedicava, no final da tarde, às matérias mais fáceis, pois era a pior hora de estudar.

Era algo quase científico, com muito foco e dedicação total. Depois, tomava banho e descia para o Curso Mário de Oliveira, na Rua dos Carijós, 150. Então, eu já tinha estudado tudo o que seria dado nas aulas à noite. Não tinha como dar errado.

No Mário de Oliveira, ele teve aulas de geometria descritiva com João Lucas Mazoni, com quem, muitas vezes, pegava carona na hora de ir embora. Entre uma conversa e outra, o professor lhe confessou que tinha vontade de namorar uma colega de sala de Júlio, chamada Cíntia. Anos mais tarde, os dois se casaram.

Depois de um ano de total imersão nos estudos, em 1959, não deu outra: no ano seguinte, às vésperas do Carnaval, ele passou no vestibular, como relembra.

Eu fiz o vestibular e arrasei! Tinha ido muito bem nas provas. Passei em terceiro lugar!

Eram cento e vinte vagas para a Engenharia Mecânica e Eletricista da UFMG, mas foram preenchidas menos de sessenta, pois a nota mínima era quatro. Os aprovados ficaram um mês sem aulas, esperando um novo exame para completar as cento e vinte vagas.



O filho do Cabizuca passou!

Júlio ficou sabendo da aprovação com antecedência, graças ao tio Albano, que tinha muitos contatos na UFMG. O resultado oficial sairia numa segunda-feira.

No sábado anterior, Albano foi, pela manhã, à Escola de Engenharia e voltou com a informação. Dona Carmen chamou o filho e deu-lhe a grande notícia, mas falou para ele não contar para ninguém. Além da boa notícia, tio Albano ainda deixou um dinheirinho de presente – 500,00 cruzeiros – para Júlio poder brincar o carnaval. No mesmo sábado, muito feliz, ele foi ao Tip Top tomar chope e comer salsichão. E sem poder contar nada.

Eu passei o domingo daquele jeito, pensando, com muita ansiedade: será que passei mesmo? Será que sou eu? Será que não é um engano?

Quando chegou a segunda-feira, o resultado estava lá, publicado! Eu não me esqueço do que aconteceu na Rede Mineira de Viação (RMV), onde meu pai trabalhava. Como farmacêutico, ele era muito conhecido por todos, pois atendia os doentes e aplicava injeções.

Naquela época, quem ia para a Escola de Engenharia, via de regra, eram os filhos das famílias que tinham dinheiro, posses e estudavam nos melhores colégios.

A RMV era estadual e pagava mal. Então, aquela notícia era fantástica. A novidade se espalhou entre os colegas dele e foi até transmitida pelo telégrafo da Rede: “O filho do Cabizuca entrou para a Escola de Engenharia!”

Ser engenheiro naquela época, em 1960, era tudo de bom. Você tinha a garantia de ser uma pessoa bem-sucedida.



Vida de professor

Juntamente com o início da vida universitária, em 1960, a carreira de professor de Júlio também começou a decolar.

Logo no primeiro ano de faculdade, o professor Mazoni, que acabara de se formar, abriu uma empresa de engenharia com alguns sócios – a Ática. Sem condições de continuar dando aulas no cursinho, ele indicou Júlio para seu lugar no Mário de Oliveira.

Por uma grande ironia do destino, ele assumiu nada menos que a disciplina em razão da qual tinha sido reprovado no vestibular – geometria descritiva –, além de desenho geométrico.

E não por coincidência, passou a dar aulas para ex-colegas de cursinho que não tinham sido aprovados no vestibular, pois voltou, no ano seguinte, para o Mário de Oliveira, mas já como professor.

Era, sem dúvida, o início de uma carreira meteórica.

Anos mais tarde, Cabizuca faz uma reflexão sobre esse período de transição entre o científico e a universidade, que vale também para toda a sua vida.

Ter tomado aquela bomba no vestibular fez toda a diferença na minha vida. Ela me jogou para frente, pois eu cheguei mais adulto à universidade. O professor que implicou comigo e o ano que perdi no científico também não atrapalharam em nada, pelo contrário. Tudo isso foi me amadurecendo.

Tudo na minha vida foi acontecendo no tempo certo. Parece que estava até programado, e eu fui seguindo minha trajetória.

Até hoje, a vida tem sido muito generosa comigo.



Livro de sucesso

Alguns projetos acadêmicos e profissionais iriam fazer com que os caminhos de Júlio e de Mazoni se cruzassem diversas vezes. Um deles, ainda em 1963, foi a ideia de produzirem um livro sobre geometria descritiva.

Júlio ainda era estudante de engenharia, mas já dava aulas da disciplina e sabia das dificuldades dos alunos, em geral, para compreenderem a literatura da área, que era toda francesa. O livro mais acessível era o de T. Chollet, mas que também era complicado, pois era escrito em francês.

Eu falei para o Mazoni: “Esses alunos têm a maior dificuldade de ler esse livro. Vamos fazer algo acessível para essa moçada de cursinho e de colégio. Você escreve o livro e eu faço o resto: a datilografia, a revisão, os desenhos e as ilustrações. Cuido até da impressão e da venda”.

Eu sabia que o Mazoni era um prodígio – ele entrou para a Escola de Engenharia com apenas 17 anos. Tinha uma inteligência rara. Seu pai, Alberto Mazoni, era catedrático da Escola de Arquitetura da UFMG e tinha sido meu professor de religião no Colégio Batista, onde estudei nos últimos dois anos do científico.

Depois de indicá-lo para seu lugar, Mazoni o alertou, meio em tom de brincadeira:

– Olha, tome cuidado, pois o Mário de Oliveira costuma não pagar os professores.

Júlio foi atrás do novo chefe e disse:

– Veja, professor, eu não tenho outro emprego.

O senhor precisa me pagar. Mário logo respondeu, sorrindo:

– Isso é conversa do Mazoni... eu pago sim, direitinho.

E, realmente, sempre pagou... direitinho.

E, assim, Mazoni escreveu o livro, com todo o conteúdo voltado para a preparação do vestibular da Escola de Engenharia. Júlio teve a ideia de fazer uma publicação com os textos separados em um volume, e as figuras em outro volume, pois elas eram complicadas, e ter os dois livros lado a lado facilitava o estudo. Isso, inclusive, reduzia os custos. O prefácio foi de Cataldo.

Júlio era amigo do pessoal da gráfica da Escola de Engenharia, que ganhou algumas horas extras para fazer o livro, sendo a primeira tiragem com quatrocentos exemplares. Com ele pronto, Júlio estabeleceu sozinho o preço e passou a vender em todos os colégios possíveis. O ano tinha começado, e todos precisavam de um material como aquele. Por sinal, muitos professores de ensino médio também compraram o livro para facilitar suas aulas.

Mazoni nem tinha visto o livro pronto. Num certo domingo, fui à casa dele, já com 70% da edição vendida. E ele estava em seu apartamento da Rua do Ouro, preocupado com as prestações de um carro da marca Dolphini, recém-comprado e financiado pela Caixa Econômica Federal. Além disso, ele e a Cíntia, sua esposa, tinham acabado de ganhar a Maria Luíza, que estava com poucos dias de vida.

Então, eu falei para ele:

– Mazoni, vim aqui para fazermos o acerto do livro.

E ele respondeu, meio aflito:

– Cabizuca, não me fala em acerto! Estou cheio de contas para pagar!

E então, para seu alívio, expliquei:

– Mas estou aqui para pagar você. Fazer o acerto do que foi vendido!

Faltava, então, definir como seria a divisão do dinheiro. Júlio ponderou:

– Você sabe muito bem o que fez e o que eu fiz. Eu ajudei no trabalho intelectual, mas, evidentemente, ele é muito mais seu. Sugiro que fique com 65%, e eu, com 35%.

E Mazoni respondeu:

– Acho bem razoável.

Estava selada a parceria. Eles dividiram o dinheiro e partiram para novas edições, que não foram poucas. Naquela manhã de domingo, entretanto, eles pegaram uma pequena parte do dinheiro e decidiram tudo.

– Vamos comprar os ingredientes e fazer uma canja de galinha gorda para a Cíntia, porque faz muito bem para mulher que está amamentando.

2 | Lá vai a vida a rodar...
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